lunes, 14 de julio de 2008

Escritos no Viaduto*


O céu estava azul. Com algumas nuvens, porém azul. Um vento gelado, típico de outono – agora já quase inverno –, cortava o viaduto do Chá, deixando meu rosto tão gelado quanto meu estômago. Sentia frio e uma vontade imensa de desistir à medida que ia reconhecendo o cenário à minha frente. Ou, mais precisamente, seus cartomantes.


Movida por uma hesitação profunda, quem sabe mistura de curiosidade com vergonha, me dirigi até aquelas pessoas, decidida a consultar a minha sorte. A escolha, porém, não foi tão simples como pensava. Meu “candidato ideal” não estava entre aqueles cartomantes e, olhando aquelas mesas repletas de búzios, cartas, cristais e outros apetrechos desconhecidos, sentia-se insegura, crente de que estava cometendo um erro e que não deveria estar ali.


Propensa a desistir, porém movida por uma curiosidade que se assimilava às coceiras chatas que incomodam e não resistimos em coçar, pus-me a observar aqueles rostos com os quais cruzava todos os dias. Assim, observando e acatando a sugestão de uma amiga, escolhi aquele que revelaria minha sorte através das cartas de tarô.


Vestido com uma espécie de bata branca, um turbante e muitos colares de contas coloridas ao redor do pescoço, o cartomante atendia um homem quando nos aproximamos. Delicadamente, ele interrompeu o atendimento e perguntou o que desejávamos. “Quanto custa a consulta?”, indaguei. Sua resposta veio imediatamente: “Dez reais, minha linda”. Com um gesto de cabeça fechei o acordo e passei a aguardar que o homem ao meu lado terminasse de conhecer seu futuro. Com a espera, pusemo-nos, eu e minha amiga, a observar os passantes.


As crianças se encantavam com as contas, os cristais e os búzios. Paravam por alguns segundos diante dele, depois eram puxadas pela mão por seus pais, que certamente não queriam ver seus filhos entre os clientes daqueles cartomantes. Ou não queriam admitir que, assim como elas, estavam curiosos para observar a cena.


Senhoras idosas com passos vagarosos miravam o homem com desdém, recriminando-o por estar ali. Já outras mulheres, algumas jovens, outras maduras, e alguns homens observavam o cliente com curiosidade, de certo se questionando o que aquele homem buscava.


O cliente, porém, parecia não se preocupar com nossa presença ou com os olhares dos transeuntes. Continuava compenetrado, absorvendo cada palavra dita. Seus questionamentos não se baseavam tanto no dinheiro ou no emprego: estava ali por um amor perdido que ansiava por ver reencontrado. Se seguisse as dicas do cartomante, claro. Alguns minutos se passaram e, vários conselhos depois, o homem sacou da carteira vinte reais, recebeu seu troco e foi embora, satisfeito por encontrar as respostas que tanto buscava. Assim que o cliente se afastou chegou minha vez. Agora não podia fugir, nem me esconder...


“E então, minha linda, o que você prefere? Búzios ou cartas?. “Cartas”, foi minha resposta. Em minha imaginação, uma consulta com um cartomante teria de ter cartas, não búzios... “Corte três bolos de cartas para mim, por favor?”. Cortei, sem saber exatamente o que estava fazendo, e muito menos por quê. Com a primeira carta vem a “revelação”: sou “filha de Iemanjá”, insegura e chorona. Em minha mente uma pergunta ecoa: como ele sabe disso? Será que está estampada em meu rosto a minha insegurança?


Segunda carta... “Você está com alguém, não está?”. Pergunta difícil de ser respondida quando não se está fisicamente com alguém... já espiritualmente... “Mais ou menos”... Por que eles sempre insistem nisso? “Ele gosta muito de você. Você está confusa, dividida, mas vocês vão ficar juntos”. Será verdade? De quem será que ele está falando?


Terceira carta, e ainda falando de amor... Sempre o mesmo... “Você teve alguém antes desse com quem está agora?”. Para essa pergunta, confesso que também não tenho resposta. Apenas um gesto de cabeça, meio afirmativo, meio negativo, responde à indagação. “Ele te fez sofrer muito”. Genérico, todo mundo sofre por amor um dia... “Ele está com outra, sabia?”. Claro que sabia. “Mas ele ainda pensa muito em você”. Otário, está perdendo seu tempo.


Enfim sai o amor, entra a família, e também o trabalho: doenças na família, briga com irmãos, emprego novo, salário maior... Entre uma carta e outra soube um pouco mais sobre a rotina daquele trabalhador, dos clientes que atende – africanos e um coreano, mas nunca um japonês. Japoneses não acreditam em previsões? Soube também seu nome, só que era tão incomum que não consegui guardar.


Ouvi tudo aquilo que esperava. Porém, ouvi também o que não esperava. “Vejo uma criança a caminho. Cuidado, pois aqui está escrito que você ficará grávida em breve”. A 'notícia', dada com certa seriedade, faz com que demonstre minha surpresa. Grávida? Como assim grávida? A revelação, inesperada, faz minha cabeça girar feito um turbilhão, me fazendo pensar nos contratempos que teria de enfrentar com uma gravidez não planejada. Estaria provando do meu próprio veneno e acreditando em tudo o que acabara de ouvir?


Em um determinado momento paro de contar as cartas que parti e paro também de me preocupar com o tempo. Já não penso no trabalho, em meu horário de entrada, nas pessoas que passam por mim ou no meu ceticismo. Assim como o cliente anterior, sou absorvida pela magia do desconhecido. Conhecer meu futuro se torna embriagante.


Entretanto, entre uma carta e outra, volto momentaneamente à realidade, trazida talvez pela amiga que me acompanha. Nestes curtos períodos começo então a observar mais atentamente a mesa à minha frente: um brilho labial, um batom, um cristal cor-de-rosa... Tudo metodicamente organizado em cima de uma toalha de cetim azul, que o vento do outono insiste em levantar, revelando uma mesinha de madeira, também azul.


Observo a expressão do cartomante. Noto que ele não me olha nos olhos, talvez por não ter certeza de tudo o que me diz. E após cada carta jogada ele faz uma pequena pausa, de cerca de três, quatro segundos antes de me dizer o significado das figuras que vejo. Durante esta pausa ele olha para a frente e para o lado esquerdo, como que buscando na memória a melhor frase para o momento.


São dez para as três. A última carta – O Enforcado –, que o vento retirou do baralho e lançou ao chão, é posta na mesa. “Você passou por muitas dificuldades no ano passado, mas está superando todas. Vai realizar todos os seus sonhos, embora você sonhe demais”, é o último conselho que escuto. A consulta termina. Ponho a mão no bolso e tiro uma nota de vinte, recebo meu troco e vou embora, satisfeita por ter saciado minha curiosidade. E também por ter descoberto que, nas ruas do centro, a felicidade tem preço: dez reais – o preço de uma consulta com os cartomantes do Viaduto do Chá.


* Texto publicado originalmente em http://www.conjecturas.com.br/juizar/viaduto.htm

1 Comment:

  1. esteblogminharua said...
    Muito bom este seu conto. Parabens!
    Cheguei ate' aqui pelo blog "Cinco em um" que tb gostei muito. Franz.

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